Acórdão nº 714/19.1BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 27 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelPAULO PEREIRA GOUVEIA
Data da Resolução27 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL I – RELATÓRIO E............, com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA PROCESSO CAUTELAR, invocando o artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e a proteção dos interesses comuns dos seus Associados, “procurando restaurar a legalidade formal e material no bloco legislativo que lhes é aplicável”, contra MINISTÉRIO DA ECONOMIA (ASAE).

A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte: - suspensão com força obrigatória geral, nos termos e para os efeitos do artigo 130º, nº 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, da norma contida no artigo 2º, nº 2 do Regulamento da ASAE nº 314/2018, de 25 de Maio, conquanto ela abranja no âmbito subjetivo regulatório, relativo às medidas contra o Branqueamento de Capitais e o Financiamento do Terrorismo, os “comerciantes que procedam à venda de obras de arte”.

O tribunal a quo decidiu julgar verificada a exceção de ILEGITIMIDADE da Requerente COMO AUTORA POPULAR, absolvendo, em consequência, a Entidade Requerida da instância.

Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte prolixo quadro conclusivo: A.A Recorrente é uma associação de galeristas de arte, i.e., de profissionais dedicados à promoção e divulgação da arte nacional e internacional e à comercialização de obras de arte (cfr. facto provado n.º 2 na Sentença).

B.O objeto social da Recorrente compreende “Apoiar a criação artística, a sua projeção, promoção e difusão, e o comércio de obras de arte.” C.A Recorrente requereu providência cautelar conservatória de suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, da norma de incidência subjetiva vertida no artigo 2.º, n.º 2, do seu Regulamento n.º 314/2018, de 25 de maio, aprovado pela ASAE, relativo aos deveres gerais e específicos de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. O artigo 2.º, n.º 2 sujeitou “os comerciantes que procedam à venda (…) de obras de arte” ao cumprimento das disposições do Regulamento, sem que, para tanto, dispusesse de habilitação legal.

D.A Recorrente requereu a providência cautelar de suspensão da norma do Regulamento para tutela e no interesse da liberdade da iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada, todos eles valores e direitos constitucionalmente protegidos.

E.O Tribunal a quo proferiu Sentença em 21 de junho de 2019, na qual decidiu pela extinção da instância, por entender, em suma, que a ora Recorrente não deteria a legitimidade processual ativa invocada para requerer a providência cautelar pretendida.

F.Entendeu o Tribunal a quo na Sentença que (i), por um lado, a ora Recorrente não reuniria os pressupostos subjetivos do “autor popular”, nos termos e para os efeitos do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (LAP) e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA; e (ii), por outro, o interesse que a Recorrente pretende tutelar não ser (supostamente) tutelável por via da ação popular.

G.Tal decisão encontra-se viciada por erro quanto à matéria de Direito; e mesmo que assim não fosse, i.e., que a interpretação do Direito feito pelo Tribunal a quo fosse admissível, sempre redundaria numa violação fragrante do Direito Constitucional e, como tal, deveria ser recusada.

H.Na norma suspendenda, a ASAE veio a incluir no âmbito subjetivo do Regulamento n.º 314/2018, de 25 de maio “os comerciantes que procedam à venda (…) de obras de arte” sem que, para tanto, dispusesse de habilitação legal.

I.A Recorrente requereu a providência cautelar de suspensão da norma do Regulamento para tutela e no interesse da liberdade da iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada, todos eles valores e direitos constitucionalmente protegidos.

J.O Tribunal a quo considerou na sua sentença que “a Requerente não está estatutariamente incumbida do dever de proteção de qualquer dos valores constitucionalmente protegidos por si invocados – liberdade de iniciativa económica privada ou direito à propriedade privada” e, portanto, “não se encontra observado no caso sub judice um principio de especialidade, legalmente exigido, na medida em que o exercício da ação popular, de acordo com a alegação da Requerente, não se circunscreve à respetiva área de ação principal”.

K.O Princípio da Especialidade encontra concretização no artigo 160.º do Código Civil.

L.Independentemente do seu caráter controverso quanto à capacidade de gozo das pessoas coletivas em respeito ao princípio da especialidade, dúvidas não restam, por um exercício exegético de interpretação simples, que o princípio da especialidade não esgota taxativamente a sua capacidade de gozo e de exercício, mas sim a enquadra – tendo a pessoa coletiva, em consequência, capacidade ainda para aquilo que seja conveniente ao seu objeto social.

M.É necessário sim um exercício de exegese mais enérgico para chegar à conclusão de que requerer a suspensão de eficácia de uma norma regulamentar que ilegalmente impõe significativas onerações à atividade de comércio de obras de arte não se encontra pelo menos dentro do feixe de atos convenientes ao cumprimento do fim e objeto social da Recorrente, expresso em “Apoiar (…) o comércio de obras de arte”.

N.Despender tempo e recursos, financeiros e humanos, para buscar a suspensão – e de seguida a eliminação – de um bloco regulamentar ilegal e que gravemente afeta a atividade dos comerciantes de obras de arte é, numa palavra, apoiar o comércio de obras de arte, reconduzindo-se à invocada defesa da liberdade de iniciativa privada e o princípio da autogestão dos comerciantes de obras de arte.

O.Mais: tendo em conta que está em causa a violação – clara e grosseira – do princípio da legalidade (por falta de lei habilitante que habilitasse (passe o pleonasmo) a ASAE a emanar uma norma de incidência subjetiva que afete os comerciantes de obras de arte no quadro do Regulamento) é evidente que este facto levaria, de per se, ao preenchimento do critério objetivo de legitimidade quanto à ação popular, porquanto de trata de tutelar em ultima ratio a legalidade democrática.

P.Encontra-se preenchido o pressuposto da legitimidade processual da Recorrente porque a ação judicial se enquadra efetivamente na “respetiva área de intervenção principal” (usando a expressão da Sentença recorrida, para efeitos precisamente contrários àqueles para que serviu).

Q.Errou, assim, o Tribunal a quo ao declarar a ilegitimidade processual ativa da ora Recorrente por violação do princípio da especialidade, uma vez que se encontra preenchido o requisito especial constante do artigo 3.º, alínea b), da LAP e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA. Deve, pois, a Sentença ser revogada, determinando-se a baixa dos autos à primeira instância para prosseguimento dos autos.

R.Acresce que a Sentença ora colocada em crise se encontra viciada por falta de fundamentação, na modalidade de contradição ou obscuridade.

S.O Tribunal a quo conclui, sem fundamentar, que os “interesses, por [alegadamente] não se integrarem no núcleo de bens e valores constitucionalmente protegidos definidos no artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, [supostamente] não conferem à Requerente legitimidade para a instauração da presente ação cautelar”. A esta conclusão se chega, sem mais, e declaradamente sem mais, uma vez que o Tribunal a quo afirma não pretender dirimir a “questão de saber se tais interesses ou valores constitucionais que a Requerente expressamente refere estar a defender na presente ação cautelar integram ou não o núcleo de interesses que o artigo 9.º, n.º 2 (e, bem assim, o artigo 1.º da LAP) visam tutelar”.

T.Ora, salvo o devido respeito, não é admissível que a Sentença absolva o Requerido da instância com fundamento em ilegitimidade da Requerente (ora Recorrida) por alegadamente não prosseguir, com a providência cautelar, interesses enquadráveis no artigo 9.º, n.º 2, do CPTA e, ao mesmo tempo, se abster de avaliar se efetivamente esses interesses que a Requerente (ora Recorrida) prossegue se incluem (como é efetivamente o caso) no núcleo de bens e valores constitucionalmente protegidos definidos nessa mesma disposição do CPTA.

U.A falta de fundamentação é geradora de nulidade de sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC ex vi legis artigo 1.º, do CPTA, cuja declaração se requer, devendo os autos baixar ao Tribunal a quo para reforma da Sentença.

V.Sem prejuízo da nulidade identificada e que se requer seja declarada em sede do presente recurso, a verdade é que a conclusão, sem mais, da Sentença quanto à suposta ausência de interesses da Recorrente enquadráveis no artigo 9.º, n.º 2, do CPTA, soçobram perante uma análise jurídica atenta.

W.O elenco de “valores e bens constitucionalmente protegidos” fundamento do uso da legitimidade ativa alargada oferecida pelo artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, que corresponde aos do artigo 1.º da LAP e do artigo 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa não é taxativo.

X.A intenção do Legislador Constituinte (em primeiro lugar) e do Legislador Constituído nunca foi o de restringir o conjunto de valores e bens constitucionalmente protegidos tuteláveis através da legitimidade processual advinda da ação popular, mas sim, em listagem aberta, admitir a tutela jurisdicional de todos os valores e bens com material dignidade constitucional.

Y.A Recorrente socorreu-se da presente ação cautelar em busca de tutela para os princípios da liberdade de iniciativa privada, do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT