Acórdão nº 396/18.8BECTB de Tribunal Central Administrativo Sul, 10 de Outubro de 2019
Magistrado Responsável | DORA LUCAS NETO |
Data da Resolução | 10 de Outubro de 2019 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I. Relatório L……, R.
e ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional da sentença de 19.06.2019 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que na ação administrativa urgente, para declaração de perda de mandato, intentada pelo Ministério Público, julgou procedente a ação procedente e, em consequência, declarou a perda do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de …………………..
As alegações de recurso que o Recorrente apresentou culminam com as seguintes conclusões: 1. Na petição inicial, o Autor alegou que “14. [...] não desconhecia o réu que tais intervenções lhe eram vedadas por lei”, 2. e, na contestação, o Réu alegou o seguinte: “ 74. [...] desconhecia o impedimento consignado no art° 8.º da LII [...].
-
Quando outorgou os dois referidos contratos com a S….., o Réu não tinha consciência de poder estar legalmente impedido de participar em atos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus.
-
Só depois de celebrado o segundo desses contratos foi alertado pelos Serviços para a possibilidade de existir esse impedimento legal.
-
[...] o Réu procedeu em conformidade com o alerta recebido e ordenou, de imediato, que não fosse, como não foi, pago o preço acordado.
-
[...] mais tarde, foi alertado para o impedimento previsto no art° 8o da Lei n° 64/93, de 26 de agosto, no sentido de que as empresas abrangidas por tal preceito não podiam celebrar contratos com o MUNICÍPIO, independentemente de o Réu os outorgar ou não e intervir ou não em qualquer fase do respetivo procedimento concursal.
-
Por essa única razão, ordenou aos Serviços, em 2017, que não voltassem a consultar nem permitissem a candidatura da S..... para fornecimento de bens ou serviços ao MUNICÍPIO”.
-
A douta sentença recorrida omitiu todos estes factos no elenco dos provados e não provados descrito na sentença, apesar de essenciais para decidir a questão da culpa do Recorrente nos atos e omissões em que assenta a peticionada perda do seu mandato.
-
Ainda, porém, que se os qualifique como complementares ou instrumentais, estariam sujeitos a ponderação e a consequências processuais idênticas.
-
A sentença nada refere, em sede de matéria de facto, sobre: - o alegado conhecimento ou desconhecimento do Réu acerca do impedimento de intervir em procedimentos concursais, contratuais ou administrativos relativos a sociedades cujo capital fosse detido em percentagem igual ou superior a dez por cento por familiares seus, e, bem assim, acerca do impedimento de tais sociedades participarem em concursos de fornecimentos de bens e serviços ao Município; - os momentos em que o Réu foi alertado pelos Serviços para a existência desses impedimentos; - a razão por que o Réu decidiu excluir a S..... do fornecimento de bens ou serviços ao MUNICÍPIO e o momento em que tomou essa decisão; 6. e deu como não provado o momento temporal em que o Réu ordenou que não fossem pagos os serviços prestados pela S..... no âmbito da execução do contrato “ex-H……”.
-
O processo contém todos os elementos necessários para que o facto alegado pelo Autor no n° 14° da petição inicial (conhecimento da proibição legal) tivesse sido e haja de ser considerado não provado, e para que aqueles factos alegados pelo Réu na contestação, tivessem ficado e tenham de ficar assentes, porque provados.
-
Inculcam decisivamente essa conclusão os depoimentos das testemunhas F....... e A......., cuja coerência, credibilidade e rigor a sentença não coloca em causa, e cujos segmentos mais relevantes foram transcritos no texto desta alegação, com indicação dos minutos da respetiva gravação, e aqui se dão por reproduzidos.
-
Destes depoimentos resulta à evidência que os próprios Serviços administrativos municipais — que, sem qualquer influência ou participação do Recorrente (alínea KK) dos factos provados), promoveram, acompanharam e executaram todas as fases dos procedimentos contratuais em causa — desconheciam os constrangimentos legais decorrentes, designadamente, do art° 8o da Lei n° 64/93, de 26 de agosto.
-
Mais resulta que, quando os Serviços alertaram o Recorrente para a primeira vertente desses constrangimentos (a participação do Réu nos procedimentos concursais), este ordenou imediatamente que não fossem pagas, como não foram, as obras da “ex-H.......”; 11. Resulta também que os Serviços só alertaram o Recorrente para o facto de a S..... não poder celebrar contratos com o Município, depois de ter sido outorgado o terceiro contrato (obra da “Escola Cidade de …………………..”), 12. e que o Recorrente ordenou, imediatamente, que a S..... não voltasse a ser consultada nem contratada, como não voltou a ser.
-
A douta sentença incorreu, assim, em erro de julgamento consubstanciado na omissão no elenco dos factos não provados daquele que o Autor alegou no n° 14 da petição inicial (cfr. nota 11), e de idêntica omissão no elenco dos factos provados daqueles que o Réu alegou e ficaram reproduzidos acima, com a única ressalva da referência ao ano de 2017 (n° 83 da contestação) que ficou indemonstrada.
-
Ao decidir de modo diverso, a douta sentença em mérito ofendeu o disposto nos art°s 94°, 2 e 3, CPTA, e 5o e 607°, 4, CPC, impondo- se que o Tribunal ad quem altere a decisão e considere provados tais factos — art° 662°, 1, CPC.
-
Salvo as decisões de não pagar à S..... o preço da obra executada ao abrigo do contrato da ex-H....... e de proibir essa empresa de voltar a ser consultada e contratada pelo MUNICÍPIO, 17. todas as intervenções do Réu nos procedimentos contratuais sub judice limitaram- se a concordar com as resoluções dos serviços da autarquia, assumidas por iniciativa deles, sem influência nem participação sua.
-
Ora, os art°s 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto, (na redação introduzida pelo art.
248° da Lei n° 42/2016, de 28 de dezembro) e 36° do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, impedem os titulares de órgãos executivos das autarquias locais de decidirem contra a resolução dos técnicos dos respetivos serviços, sob pena de responsabilidade reintegratória.
-
Tais preceitos assentam no princípio geral de que o parecer dos técnicos se presume fundamentado e legal e, por isso mesmo, é não só obrigatório como, em regra, vinculativo.
-
Seguindo o caminho da interpretação enunciativa (pela qual o intérprete deduz de um preceito legal a norma que nela está virtualmente contida) e fazendo apelo ao argumento a minori aã majus (a lei que proíbe o menos, proíbe o mais) não podem restar dúvidas de que se tais preceitos, para o efeito menor da responsabilidade civil reintegratória, proíbe o autarca de decidir contra o perecer dos técnicos, por maioria de razões o proíbe para o efeito maior da responsabilidade tutelar (perda de mandato) ou criminal.
-
Aliás, pertencendo os Ministros e os membros representativos de autarquia local para efeitos criminais à mesma categoria de titulares de cargos políticos — cfr., as alíneas d) e i) do n° 1 do art° 3o da Lei n° 34/87, de 16 de julho -, violaria o princípio constitucional da igualdade consagrado, ia. no art° 13°, 1, CRP, recusar-se nesta matéria aos titulares de órgãos autárquicos o regime-regra do art° 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, que obriga os Ministros a respeitar as resoluções dos técnicos e os iliba de responsabilidade civil e criminal quando as tenham adotado.
-
Até pela razão acrescida da legitimação eleitoral dos órgãos autárquicos, o conjunto normativo formado pelos art°s 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, e 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto (redação atual), assim interpretado, seria inconstitucional.
-
O art° 248° da Lei n° 42/2016, de 28 de dezembro, que alterou a redação do art° 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto, é uma lei interpretativa, que pôs termo a uma controvérsia recorrente da jurisprudência, sendo de aplicação imediata, face ao disposto no art° 13° do Código Civil.
-
Como sempre o seria por aplicação do princípio geral do direito penal e tutelar da aplicação retroativa da lei mais favorável.
-
Não têm, por isso, fundamento as afirmações assertivas e irrestritas constantes da douta sentença, nos termos das quais o Réu “pod[ia] concordar ou não com as propostas efetuadas e, neste último caso, afastar-se das mesmas e decidir de outro modo” (fls 33), e “podia e devia [...] ter obstado a que a empresa S..... fosse convidada a participar [nos] procedimentos” porque “essa obstaculizarão dependia unicamente de s”’ (fls 61).
-
O autarca decisor só pode contrariar a resolução dos técnicos desconforme com a lei, se tiver conhecimento efetivo da lei com a profundidade que lhe permita sustentar o seu dissenso.
-
Se e quando o decisor se limita a concordar com a resolução dos técnicos e esta se revelar ilegal, não pode senão presumir-se que desconhece a lei violada.
-
O ónus do conhecimento da lei impende sobre os técnicos e não sobre o autarca; o desconhecimento da lei pelo decisor é a regra e o seu conhecimento é a exceção.
-
Também por isso e sempre à luz do regime imposto pelos art°s 36°, 1, do Decreto 22.257, de 25 de fevereiro de 1933, e 61°, 1 e 2, da Lei n° 98/97, de 26 de agosto (redação atual), é indefensável e descabida a tese sobraçada a fls 54 da sentença, segundo a qual “o recorrente, ao aceitar o múnus para que foi eleito, tinha o dever de obter um mínimo de preparação técnica ou de conhecimentos necessários ao seu desempenho, se ainda o não possuía, e de se informar devidamente sobre as obrigações que o mesmo acarretava.” 30. A questão nuclear da culpa grave do Réu enquanto requisito essencial da sanção tutelar da perda de mandato (art° 242°, 3, CRP) não se resolve pela via da sua liberdade decisória (que não existe) nem pelo princípio iluminista de irrelevância do desconhecimento da lei (que se mostra espúrio neste domínio).
- ...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO