Acórdão nº 221/20.0BELSB-S1 de Tribunal Central Administrativo Sul, 21 de Janeiro de 2021
Magistrado Responsável | RICARDO FERREIRA LEITE |
Data da Resolução | 21 de Janeiro de 2021 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo – Sul: I. Relatório O MINISTÉRIO PÚBLICO, alegando agir em nome próprio, em defesa da legalidade, não se conformando com o teor do despacho proferido pelo TAF de Almada, datado de 01 de Julho de 2020, que indeferiu o requerimento de recusa de aplicação das normas constantes do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redacção da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material e a declaração de nulidade por alegada falta de citação do Réu Estado, com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial e a determinação da citação do Estado no Ministério Público.
O Recorrente formulou as seguintes conclusões: 1ª – O Ministério Público, agindo em nome próprio, em defesa da legalidade, arguiu, incidentalmente, a inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redacção conferida pela Lei nº 118/2019, de 17.09, por violação do disposto na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP e no nº 2 dessa mesma disposição, requerendo a recusa de aplicação, neste processo e, enquanto representante do Réu Estado, reclamou contra a nulidade por falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial, e requereu a citação do Estado no Ministério Público; 2ª – Este requerimento não foi deferido pelo despacho recorrido que considerou, erradamente, que o “Estado foi citado na pessoa da Digníssima Magistrada do Ministério Público e posteriormente foi remetida citação via postal ao Centro de Competências Jurídicas do Estado‖.
3ª – E também não recusou a aplicação, neste processo, das referidas normas, considerando que, ―relativamente à desaplicação da norma constante do segmento final do nº1 do artigo 11ºdo CPTA, cuja única alteração legislativa foi a introdução da palavra possibilidade em vez de sem prejuízo, não se vislumbra o alcance da desaplicação da mesma‖ e que do nº 4 do artigo 25º do CPTA ―não se retira que não seja o Ministério Público a entidade responsável por representar o Estado na defesa dos seus interesses patrimoniais, nem atribuí poderes de representação em juízo a outra Entidade; 4ª – Nos presentes autos, foi, por lapso, colocada no SITAF a citação ao Ministério Público, em representação do Estado Português, citação essa que não chegou a ser assinada, por, face ao lapso detectado, a assinatura electrónica ter ficado indisponível, pelo que não o Estado Português não foi citado no Ministério Público; 5ª – No entanto, mesmo que assim não se entendesse, face ao quadro legal vigente, essa citação do Ministério Público em representação do Estado não poderia ter-se por válida, e seria nula, face à disposição conjugada dos artigos 11º, nº 1 e 25º, nº 4 do CPTA na sua versão actual; 6ª – No cumprimento das disposições legais em vigor, o Centro de Competências Jurídicas do Estado, em representação do Réu Estado Português, foi citado para contestar a acção, no prazo de 30 dias, sendo, pois, a validade, constitucionalidade e legalidade desta citação que importa determinar; 7ª – O artigo 25º, nº 4 do CPTA com as alterações introduzidas pela Lei nº 118/2019, de 17.09, estabelece que, quando é demandado o Estado, já não é citado o Ministério Público em sua representação, sendo a citação feita no Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração directa do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros; 8ª – Sob uma aparência puramente procedimental e regulamentar, trata-se de uma norma inovadora que, quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redacção igualmente conferida pela Lei nº 118/2019, transforma a representação do Estado pelo Ministério Público numa excepção, quando sempre foi a regra; 9ª – A disposição conjugada do disposto nos artigos 25º, nº 4 e 11º, nº 1 do CPTA, na versão actual, esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme com o disposto no artigo 219º, nº 1 da CRP; 10ª – A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP, que estabelece o estatuto constitucional do Ministério Público, contém a imposição da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado e configura um imperativo constitucional que o legislador ordinário não pode deixar de observar; 11ª – Esta função de representação do Estado pelo Ministério Público, estrutural ao modelo constitucional de Ministério Público em Portugal, está consagrada na legislação constitucional desde a Constituição de 1933, tendo sido mantida na Constituição de 1976 e permanecido inalterada ao longo das sete revisões constitucionais já ocorridas, bem como está, desde o Sec. XIX, refletida na legislação ordinária aplicável; 12ª – Com efeito, a representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única excepção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário; 13ª – A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que incumbe ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a nossa tradição jurídica; 14ª – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de ―autonomia‖ (artigo 219º, nº 2 da CRP), cuja actuação é sempre vinculada a ―critérios de legalidade e objectividade‖ (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, incumbiram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; 15ª – Pelo que, sendo o Ministério Público, segundo o ordenamento constitucional, o ―representante‖ (e não patrono, ou advogado ou mandatário) do Estado (administração central), para efeitos do respetivo contencioso judiciário, incluindo o contencioso administrativo, o Estado não poderá deixar estar em juízo representado pelo Ministério Público, a quem institucionalmente compete exprimir a ―vontade judiciária‖ do Estado e conduzir o processo nos seus aspectos de técnica processual, no quadro de autonomia e da vinculação a critérios de legalidade e objetividade, sem prejuízo de poderes de disposição da relação material controvertida pelos órgãos superiores do Governo.
16ª – A representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público configura um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material.
17ª – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a nova redacção da parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, reduz a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma mera eventualidade, pois ao acrescentar o substantivo ―possibilidade‖, transformou esta regra em excepção, sendo que, paralelamente, não foi introduzida qualquer alteração ao artigo 51º do ETAF que, em consonância com o imperativo constitucional, continua a atribuir ao Ministério Público a representação do Estado junto dos tribunais administrativos e fiscais; 18ª – A nova redação do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo artigo 219º, nº 1 da CRP; 19ª – A desarmonia dessa norma com a Lei Fundamental torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao JurisAPP; 20ª – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o Réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal); 21ª – Nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas colectivas - como é o caso indiscutível do Estado-Administração - realiza-se ―na pessoa dos seus legais representantes‖ e o natural representante do Estado em juízo é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação; 22ª – O JurisApp não é um órgão, mas sim um serviço central da administração directa do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros e sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar, sendo que nenhuma norma lhe confere poderes representativos do Estado em juízo, poder-dever esse que é atribuído ao Ministério Público, não se vislumbrando forma de este ser afastado dessa representação no contencioso administrativo, sem violação do artigo 219º, nº 1 da CRP; 23ª – Todavia, por força dos efeitos jurídicos e práticos da disposição conjugada dos artigos 11º, nº 1 e 25º, nº 4, do CPTA, o Estado (administração central) passa a ser representado, no contencioso administrativo, pelo JurisAPP, ao qual é atribuída, desde logo, a competência para receber a citação, o que, nos termos do...
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