Acórdão nº 01031/19.2BEAVR-S1 de Tribunal Central Administrativo Norte, 18 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelRicardo de Oliveira e Sousa
Data da Resolução18 de Dezembro de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:* * I – RELATÓRIO O MINISTÉRIO PÚBLICO vem interpor RECURSO JURISDICIONAL do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, de 20 de agosto de 2020, promanado no âmbito da Ação Administrativa [registada sob o nº. 1031/19.2BEAVR] intentada por F.

e S.

de entre outros, contra o ESTADO PORTUGUÊS, que indeferiu a arguição de nulidade da falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS, mais não atendendo à invocação de inconstitucionalidade material das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro.

Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…) 1 - A presente ação foi intentada contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Direção do Centro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e o Estado Português, tendo, nos termos do disposto no artigo 25°, n° 4 do código de processo nos tribunais administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, e o Ministério Público não foi citado, mas apenas notificado da pendência da mesma, designadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 85°, n° 1 do CPTA; 2 - A Lei n° 118/2019, de 17 de setembro, que entrou em vigor no passado dia 16.11.2019, introduziu no CPTA nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros; 3 - Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar - o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do n° 1 do artigo 11° do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei n° 118/2019; 4 - Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa - (...) sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se - (...) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, o que transformou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n° 1 do artigo 219° da CRP; 5 - Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do n° 1 do artigo 219° da CRP; 6 - A norma do artigo 219°, n° 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado; 7 - Em 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor o novo estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n° 68/2019, de 27 de agosto -i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei n° 118/2019, de 17 de setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4°, n° 1, al. b)) e a prever a existência de um departamento central de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos da Procuradoria-Geral da República, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61°, n° 1 e 2); 8 - A Lei n° 114/2019, de 12 de setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAFf/2002, - i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei n° 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas -, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51°; 9 - A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da Lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do n° 1 do artigo 24° do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário; 10 - A norma do n° 1 do artigo 219° da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país; 11 - Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de autonomia (artigo 219°, n° 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a critérios de legalidade e objetividade (artigo 3°, n° 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material; 12 - Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do n° 1 do artigo 11° do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6° da Lei n° 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade; 13 - A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo - possibilidade, mas desse modo transforma a regra da - representação do Estado pelo Ministério Público em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51° do ETAF.

14 - Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do n° 1 do artigo 11° - sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público) com a acolhida no CPC (artigo 24°, n° 1: —o Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a Lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio...), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem caráter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por Lei concreta; 15 - A nova redação do artigo 11°, n° 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do n° 1 do artigo 219° da CRP; 16 - A desarmonia dessa norma com a lex fundamentalis torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do n° 4 do artigo 25°, também aditado pela referida Lei n° 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao centro de competências jurídicas do Estado; 17 - No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal); 18 - Por outro lado, nos termos do artigo 223°, n° 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas -como é o caso indiscutível do Estado-administração - realiza-se na pessoa dos seus legais representantes; 19 - O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), o seu representante natural é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação; 20 - O mecanismo implementado pelo n° 4 do artigo 25°, conjugado com a parte final do n° 1 do artigo 11° do CPTA, ambos na redação da Lei n° 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo; 21 - Acresce que a norma do n° 4 do art.° 25° CPTA, na redação da Lei n° 118/2019, vem atribuir ao centro de competências jurídicas do Estado a competência para coordenar —os termos da (...) intervenção em juízo do —serviços a quem aquele entenda —transmitir a citação, que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao Ministério Público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o Estado; 22 - Só um construtivismo artificial e pré-ordenado pode sustentar a legitimidade constitucional da opção do legislador ordinário, creditando-a na faculdade de a assembleia da república definir a competência do Ministério Público (cfr. artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP), pois é verdade elementar que a Lei formal também deve obediência ao princípio da constitucionalidade; 23 - Apesar da sua falta de clareza e desarmonia com a arquitetura do sistema processual, resulta do preceito que o dito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT