Acórdão nº 289/20.9BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 01 de Outubro de 2020
Magistrado Responsável | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
Data da Resolução | 01 de Outubro de 2020 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO M….., nacional da República da Guiné (Guiné-Conacri), intentou ação administrativa, tramitada como processo urgente, contra o Ministério da Administração Interna / SEF, impugnando a decisão da Diretora Nacional do SEF de 02/12/2019, que considerou o seu pedido de proteção internacional infundado, pedindo se revogue tal decisão e seja admitido o seu pedido de proteção internacional.
Alega, em síntese, ter fugido do seu país para evitar a celebração de casamento com outro cidadão, imposto pelo pai, que a agrediu e ameaçou, tendo a decisão impugnada violado o princípio do inquisitório e o princípio do benefício da dúvida.
Citado, o SEF apresentou resposta, pugnando pela improcedência do pedido.
Por sentença datada de 02/04/2020, o TAC de Lisboa julgou a ação improcedente e absolveu a entidade demandada dos pedidos.
Inconformada com esta decisão, a requerente interpôs recurso, terminando as respetivas alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem: A. Decidiu o Tribunal a quo, quanto ao pedido de proteção internacional formulado pela Recorrente, ao abrigo quer do artigo 3.º (com referência ao n.º 2 para o caso dos autos), quer ao abrigo do artigo 7.º, para efeitos de proteção subsidiária, ambos da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, que: “Desde logo, mostram-nos que não estamos perante um qualquer «casamento forçado». Estamos, sim, perante uma forte vontade do pai da Autora, e contra a vontade desta, no sentido de a mesma casar com um determinado indivíduo (recorde-se que já se consideraram não credíveis as declarações da Autora, pelo que neste momento a apreciação toma apenas como pressuposto o quadro hipotético de tais declarações serem credíveis). Ora, a única consequência resultante da eventual não aceitação da vontade do pai – segundo a própria Autora – seria a de que «não podia ficar em casa». Mais, e sempre segundo a própria: «ia rasgar a [sua] certidão de nascimento e que [deveria] encontrar outro pai». A partir do momento em que recusou casar com o indivíduo que o pai lhe «propôs» (a expressão é da Autora), o que sucedeu? O «pai começou a [tratar a Autora] de forma diferente, gritava [com a Autora]» e «depois gritava com a mãe [da Autora] também». Chegou ainda a dar-lhe uma bofetada num momento em que a Autora lhe pediu dinheiro.
É isto, portanto, o que os autos mostram, num quadro factual em que se admitiria como verdadeiras as declarações da Autora. Um quadro de natureza familiar, que nada tem a ver com o regime de concessão do direito de asilo. Assim como não preenche os requisitos do artigo 7.º/1, o qual estabelece, sob a epígrafe Proteção subsidiária, que «[é] concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave», considerando o n.º 2 ofensa grave, para esse efeito, e nomeadamente: «a) A pena de morte ou execução; b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos».
Além de não ser credível, como se viu, a factualidade descrita pela Autora, a ser verdadeira, nada tem a ver, também, com os pressupostos que podem determinar a concessão da referida autorização de residência por proteção subsidiária. A ação terá, pois, de improceder” B. Contudo, não pode, a ora Recorrente, concordar jamais com o referido entendimento.
C. Desde já, pelo facto de tal decisão não se encontrar devidamente fundamentada.
D. Contrariamente ao argumentado pelo Tribunal a quo, o facto de não estarem reunidos os pressupostos necessários para a concessão do pedido de asilo nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho), não quer dizer que não estejam reunidos os pressupostos elencados pelo n.º 2 desta norma.
E. No entanto, o facto de não se encontrarem preenchidos os pressupostos do n.º 3, não significa que a Recorrente não possa ser pessoa elegível para proteção subsidiária, uma vez que aos e às requerentes de asilo, o ordenamento jurídico português distingue três vias de proteção internacional, nomeadamente a proteção subsidiária, que é de aplicar às pessoas carecidas de proteção internacional que não são – ou não podem ser – consideradas refugiadas.
F. Disso mesmo nos dá conta o próprio artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, quando nos diz “(...) a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º (...)”.
G. Pelo que não pode o Tribunal a quo fundamentar a sua decisão na falta de credibilidade e pertinência das declarações da Recorrente, culminando na afirmação: “Além de não ser credível, como se viu, a factualidade descrita pela Autora, a ser verdadeira, nada tem a ver, também, com os pressupostos que podem determinar a concessão da referida autorização de residência por proteção subsidiária. A ação terá, pois, de improceder.” H. Ficou devidamente comprovado que a República da Guiné não consegue dar resposta útil e efetiva às sucessivas violações de direitos humanos que ocorrem no seu território.
I. Desde ao cenário de tráfico de seres humanos, com o qual este Estado se debate, à não proteção efetiva de mulheres, adultas e crianças que, em virtude de o serem, são submetidas, não só mas especialmente, no seio familiar a casamentos forçados, violações maritais – que, desde logo, não são tipificadas como conduta criminosa –, a situações de violência doméstica.
J. Passando pela inexistência de independência do sistema judicial do poder político, ao problema de corrupção endémica que aquele país enfrenta.
K. Esta situação é reconhecida mundialmente, sendo objeto de vários relatórios recentes, publicados em 2020 e que tivemos oportunidade de juntar aos presentes autos.
L. Por outro lado, a aplicação do artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, aqui em análise, não pressupõe uma comprovação subjetiva para o preenchimento dos seus requisitos.
M. De facto, o artigo em questão protege todos os estrangeiros “(...) a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.” N. Esta proteção dá-se pelo facto de se registarem violações sistemáticas de direitos humanos, quer pelo facto de o risco de sofrer ofensas graves ser maior e evidente.
O. Quer do depoimento feito pela Recorrente, quer pelos cenários relatados pelo EASO e pela ECOI, se verifica um efetivo e sistemático abuso dos direitos humanos na República da Guiné/Guiné Conacri, bem como um risco elevado de se sofrer ofensas graves, por incapacidade e/ou ineficiência de resposta do Estado e respetivas autoridades judiciais e policiais.
P. Sobre a aplicabilidade deste instituto (artigo 7.º da Lei 27/2008. de 30 de junho) já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Sul, dizendo:“(...) a autorização de residência por razões humanitárias, prevista no artigo 8º da Lei nº 15/98, de 26/3 [hoje, artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30/6, sob a epígrafe “protecção subsidiária”], só pode ser concedida se, no país de origem do interessado, existir «grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos» que, em concreto, impeça [“pulsão objectiva”] ou impossibilite [“pulsão subjectiva”] o regresso [e permanência] do requerente ao país da sua nacionalidade”(...).” - Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 26-03-2015, processo n.º 11691/14, disponível na íntegra em http://www.dgsi.pt.
Q. Com o mesmo entendimento vide, também, o Supremo Tribunal Administrativo, que no seu Acórdão de 29 de Outubro de 2003 fixou que: “I - A concessão de autorização de residência por razões humanitárias (...) depende da existência no país da nacionalidade do interessado de uma situação de «grave insegurança devida a conflitos armados»(...). II - Por outro lado, só se estará perante uma «sistemática violação dos «direitos humanos», para aquele efeito, quando esteja em causa a violação de direitos humanos relacionados com a segurança dos cidadãos e que as violações ocorram frequentemente de forma que gerem na generalidade dos residentes nesse país um sentimento de grave insegurança. (...)- Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29-10-2003, processo n.º 0151/03, disponível na íntegra em http://www.dgsi.pt.
R. Ora, de tudo o já...
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