Acórdão nº 00312/11.8BEVIS de Tribunal Central Administrativo Norte, 20 de Novembro de 2014

Magistrado ResponsávelFrederico Macedo Branco
Data da Resolução20 de Novembro de 2014
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: I Relatório MLASF, no âmbito da Ação Administrativa Especial intentada contra o Município de SCD, tendente a impugnar a deliberação de 8 de Abril de 2011, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão, inconformado com o Acórdão proferido em 14 de Março de 2014, através do qual foi julgada improcedente a acção, veio interpor recurso jurisdicional do referido Acórdão, proferido em primeira instância e em coletivo, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.

Formula a aqui Recorrente nas suas alegações de recurso, apresentadas em 23 de Abril de 2014, as seguintes conclusões: “1ª O acórdão em recurso enferma da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artº 615º do CPC, uma vez que nem um só facto especificou como estando provado que permita alcançar a conclusão jurídica de que a arguida se apropriara de dinheiros públicos, uma vez que para este efeito era necessário, no mínimo, que tivesse dado por provado que quantias haviam sido entregues à arguida, quem as entregara e quando as entregara, assim como teria de dar por provado que essas mesmas quantias não haviam dado entrada nos cofres camarários - e nem um só facto destes foi dado por provado, não tendo sequer o Tribunal a quo dado por provado um só dos factos pelos quais a arguida havia saído acusada.

Para além disso, 2ª O aresto em recurso enferma igualmente da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artº 615º do CPC por haver uma total contradição entre os fundamentos de facto – dos quais não resulta provado que o recorrente tenha recebido qualquer quantia ou utilizado as mesmas em proveito próprio – e a decisão alcançada – que confirma a legalidade do acto punitivo por o recorrente se ter apropriado de dinheiros públicos.

  1. Aliás, e em bom rigor, para além de não ter permitido à A. provar os factos integrantes do vício de violação de lei por erro nos pressupostos, o Tribunal a quo nem sequer dá por provado um só facto que demonstre que a A. ficou com dinheiros que não lhe pertenciam, numa demonstração típica da justiça de um Estado totalitário, onde nada se dá por provado mas onde se considera culpado quem não se conseguiu demonstrar que é culpado. Acresce que, 4ª Ao formar a sua convicção e ao decidir o mérito da acção apenas com base na prova documental constante do processo disciplinar – prova essa que não foi presenciada pelo Tribunal a quo e que não faz prova plena do que quer que seja, não passando de um entre vários meios de prova admissíveis – e sem sequer permitir à parte que se presume inocente produzir prova sobre os factos que alegara para fundamentar os vícios imputados à deliberação punitiva – máxime o vício de violação de lei por erro nos pressupostos e facto -, o aresto em recurso incorreu em flagrante erro de julgamento, violando frontalmente os princípios constitucionais do acesso ao direito, da tutela judicial efectiva, do contraditório e da igualdade das partes, consagrados nos artºs 20º e 268º/4 da Constituição e nos artºs 6º do CPTA e 3º do CPC, assim como os próprios artºs 87º e 90º do CPTA, dos quais decorre a obrigatoriedade de enunciar os temas de prova dos factos controvertidos à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade.

  2. O direito fundamental à tutela judicial efectiva, envolve “o direito a um processo paritário com aplicação efectiva do princípio do contraditório e plenas possibilidades de defesa...” (v. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Os Direitos Fundamentais dos Administrados após a Revisão Constitucional de 1989, Revista Direito e Justiça, vol. VI, 1992, pág. 325), determinando a inconstitucionalidade de todas as limitações de ordem probatória que impeçam o particular de demonstrar a veracidade dos factos por si alegados (v., neste sentido, LEBRE DE FREITAS, Inconstitucionalidade do CPC, Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, 1992, pág. 36), pelo que os Tribunais Administrativos não podem deixar de proceder ao controlo da materialidade dos factos, de modo a averiguar se ocorreram ou não os pressupostos de facto em que se baseou a punição decretada pela Administração (v. neste sentido ROGÉRIO SOARES, Sentido e Limites da Administração Pública, Cadernos de Direito Administrativo de Macau, 1997, pág. 70, LUÍS VASCONCELOS DE ABREU, “Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: as relações com o Processo Penal”, pág. 65, RUI MACHETE, Algumas Notas sobre a chamada Presunção da Legalidade dos Actos Administrativos, in Estudos em Homenagem ao professor Doutor Pedro Soares Martinez, pág. 729, ALBERTO OLIVEIRA e A. ESTEVES REMÉDIO, Sobre o Direito Disciplinar da Função Pública, estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, 2001, Vol. 2, págs. 639 a 642).

  3. Deste modo, por força do direito à tutela judicial efectiva e dos princípios da igualdade das partes e da presunção de inocência, sendo imputado ao acto impugnado o vício de violação de lei por erro nos pressupostos e sendo impugnados os factos em que assentou a decisão punitiva, a jurisdição administrativa fica vinculada a enunciar os temas de prova e a permitir a prova dos factos controvertidos que sejam relevantes para curar do mérito da acção à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito, sendo certo que a decisão judicial que denegar a uma das partes a possibilidade de provar os factos por si alegados e que são controvertidos e essenciais para o apuramento da causa viola frontalmente o princípio da tutela judicial efectiva (v. CARLOS CADILHA, A prova em contencioso administrativo, CJA nº 69º, pág. 49 e ainda PAULO VEIGA E MOURA Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado, 2ª Edição, 2011, p. 122).

    Acresce que 7ª A prova procedimental constante do processo disciplinar é apenas um dos meios de prova legalmente admissíveis, não fazendo prova plena nem significando que o juiz fique prisioneiro da mesma ou possa prescindir e considerar irrelevante a prova da contraparte, pelo que a circunstância de a administração ter dado por provado que o arguido praticara determinado comportamento não impede o A. de produzir prova destinada a contraditar os pressupostos factuais em que se baseou o acto impugnado nem invalida que em sede de gestão inicial do processo o juiz administrativo deve definir os temas de prova à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, uma vez que “ Dar por assente processualmente a prova procedimental ou administrativa seria quase o mesmo que reafirmar a presunção de legalidade do acto e, porventura, violar o princípio fundamental da presunção da inocência” (v., neste sentido, COLAÇO ANTUNES, O juiz administrativo, súbdito da prova procedimental, CJA nº 56, págs. 3 e segs, e CARLOS CARVALHO, O juiz administrativo e o controlo jurisdicional da prova procedimental do processo disciplinar, CJA nº 101, pág. 23). Por fim, 8ª Também a jurisprudência deste douto Tribunal Central Administrativo do Norte vem afirmando que dos princípios da igualdade das partes e do contraditório decorre que se “…deva conceder às partes a possibilidade de nele fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão…” (v. Acº de 28/3/2014, Proc. nº 316/10.8BECBR). Consequentemente, 9ª Tendo a A. imputado ao acto impugnado o vício de violação de lei por erro nos pressupostos e alegado factos que contraditavam a factologia dada por assente pela Administração – v., entre outros, os artºs 39º, 40º e 46º da p.i., onde alegara que entregara nos cofres camarários todas as quantias que lhe haviam sido entregues e que o dinheiro nunca saíra do edifício camarário -, não poderia o Tribunal a quo deixar de definir os temas de prova que eram essenciais para apurar a veracidade dos pressupostos de facto em que assentara a decisão punitiva e para curar da questão de direito à luz das diversas soluções plausíveis de direito, constituindo um erro clamoroso que para formar a sua convicção só atenda à prova produzida por uma das partes e à solução de direito por ela preconizada e ache que nem sequer é necessário que a parte que se presume inocente produza prova sobre os factos que alegara para demonstrar a sua inocência e o erro da decisão administrativa.

  4. Na verdade, se a livre convicção com que o Tribunal aprecia as provas tem assento legal e constitucional, já a possibilidade de formar a sua convicção apenas com base na prova produzida por uma das partes e sem sequer querer saber da prova que eventualmente a outra parte possa produzir em defesa da solução que preconiza para a questão de direito é de todo incompatível com os mais elementares princípios estruturantes de um Estado de Direito, pelo que o aresto em recurso é, neste segmento, um brilhante exemplo de uma sentença própria de um estado totalitário – onde historicamente se demonstra que só a parte que acusa produz prova e que a prova que o acusado pretende levar a efeito é sempre rejeitada com o argumento de que é irrelevante e desnecessária.

  5. Para além de ter incorrido em flagrante erro de julgamento ao conhecer do mérito da acção sem permitir a uma das partes produzir prova sobre os factos que alegara para demonstrar o vício de violação de lei, o aresto em recurso interpretou os artºs 6º, 87º e 90º do CPTA em sentido materialmente inconstitucional, por violação do direito de acesso à justiça, do direito à tutela judicial efectiva e do princípio da presunção da inocência, dos quais decorre que os factos incriminadores do arguido podem por ele ser contrariados em juízo através de qualquer meio de prova legalmente admissível e que a livre convicção do Tribunal só se pode e deve formar após ter sido produzida a prova sobre esses mesmos factos. Acresce que 12ª Por força do disposto no artº 269º /3 da Constituição e no nº 1 do artº 37º do ED, o procedimento disciplinar enferma de nulidade insuprível sempre que tenham sido omitidas diligências probatórias que...

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