Acórdão nº 08411/12 de Tribunal Central Administrativo Sul, 05 de Maio de 2016

Magistrado ResponsávelHELENA CANELAS
Data da Resolução05 de Maio de 2016
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I. RELATÓRIO Vem o presente recurso interposto pelo HOSPITAL DE D. ESTEFÂNIA, entretanto integrado no CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA CENTRAL, EPE, réu na ação administrativa comum sob a forma de processo ordinário instaurada em 29/05/2005 no Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa (Proc. nº 2067/05.6BELSB) por RUTE ………………………….

(devidamente identificada nos autos) – na qual esta peticionou que o réu fosse a) declarado culpado da morte da filha da autora, por atuação negligente de um dos médicos que a assistiu, seu agente, nos termos do artigo 3°, nº 1 do D.L nº 48051/67 de 21 de Novembro; b) declarado culpado da morte da filha da autora, por omissão negligente na garantia dos meios técnicos necessários ao diagnóstico que permitiria ter salvo o feto, nos termos do artigo 483° do C. C.; c) e consequentemente condenado no pagamento de indemnização à autora, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, num montante nunca inferior a 252.335,94 € acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento – da sentença de 09/05/2011, daquele Tribunal, que julgando parcialmente procedente a ação, condenou o réu a pagar à autora Rute ………………………, os seguintes montantes: a) 1.276,35 € a título de indemnização por danos patrimoniais; b) 25.000,00 € a título de indemnização pelo dano não patrimonial resultante da morte da sua filha; c) 25.000,00 € a título de indemnização por danos não patrimoniais produzidos em consequência do desgosto que a sua morte causou à autora.

Nas suas alegações de recurso o recorrente formula as seguintes conclusões nos seguintes termos: 1ª O Tribunal a quo, desde logo, decidiu em face dos factos dados como provados, de forma errónea.

  1. O Tribunal a quo tomou por verificado o pressuposto da ilicitude, considerando «a ausência e/ou disponibilidade dos equipamentos mencionados é incontestavelmente, uma falta no funcionamento do serviço» (cfr. p. 26 da sentença) (negrito nosso).

  2. No entendimento que a jurisprudência e a doutrina têm construído, na vigência do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, a partir da norma do artigo 22.º da nossa Constituição, que estabelece que «O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem», a responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos emergentes do exercício da sua actividade no exercício da sua função administrativa – admite-se – pode tomar a feição de responsabilidade funcional, abrangendo os danos derivados de acto ou omissão que, embora podendo decorrer de uma falta individual ou individualizável de um ou mais funcionários, não lhes é imputável directamente, mas sim ao serviço ou órgão onde a pessoa física exerce as suas funções (“faute de service”).

  3. Porém, mesmo nessas situações, de “faute de service” é necessário ter-se verificado uma conduta ilícita.

  4. A respeito da ilicitude, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, estabelece o seguinte: «Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais ou regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração».

  5. Contrariamente ao que é ditado pelas normas legais referidas, não sustentou o Tribunal a quo a sua conclusão sobre a ilicitude da ausência e/ou indisponibilidade dos equipamentos mencionados no caso em quaisquer normas legais ou regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, regras de ordem técnica e de prudência comum que na situação devessem ser tomadas em consideração.

  6. O Tribunal a quo perspectiva a indisponibilidade do cardiotocógrafo (dada como provada, constante da alínea J) da matéria de facto) como uma violação da legis artis.

  7. Porém, se nenhuma norma legal, regulamentar, ou de ordem técnica é identificada para esse efeito, menos se vislumbra na matéria de facto dado por provada como veio o Tribunal considerar que a legis artis impunha uma monitorização contínua da Autora com cardiotocógrafo, para vir a concluir – erroneamente – que a sua indisponibilidade é uma falta de serviço.

  8. Por ter concluído pela verificação do pressuposto da ilicitude nos termos acabados de enquadrar, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 6.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

  9. O Tribunal a quo considerou, ainda, que «a actuação dos médicos do R. foi ilícita (quanto ao resultado), envolvendo a lesão de direitos fundamentais à vida, à integridade pessoal e à saúde (artigos 24.º, n.º 1, 25. E 64.º da C.R.P. (…) e para além disso, os médicos do R. estavam igualmente adstritos a uma obrigação de meios: deveriam actuar com uma especial diligência, a fim de evitar uma qualquer lesão dos direitos subjectivos, havendo, nas circunstâncias concretas, a possibilidade de se prever essa lesão, era obrigação dos médicos agir com especiais deveres de cuidado de forma a evitar a sua consumação» (cfr. pp. 26-27 da sentença).

  10. Ora, a contradição entre tal conclusão e os factos provados não poderia ser mais evidente.

  11. De acordo com o ponto H) da matéria de facto, ficou provado que «Foi efectuado um CTG à Autora pelas 5h20m, exame que revelou taquissistolia uterina, ou seja, excessivo número de contracções, pelo que foi ordenado o seu internamento».

  12. Por sua vez, e em relação com aquele facto, na alínea h) da matéria de facto, dada como provada, é afirmado que «Face a uma taquissitolia uterina, não era forçoso ou sequer provável tratar-se de uma situação de descolamento da placenta».

  13. Ora, no caso sob apreço nenhuma possibilidade havia, contrariamente ao juízo do Tribunal a quo, de previsão da lesão que veio a ocorrer. Nessa medida, nenhuma obrigação de meios, para além do que efectivamente foi empregue, era imposta aos médicos.

  14. Note-se, aliás, que, de acordo com o facto provado, constante da alínea O) da matéria de facto, «a bradicárdia fetal e o descolamento da placenta foram a causa de morte do feto».

  15. Sendo que «Dos elementos fornecidos à Autora resulta claramente que a causa de morte do seu bebé, que foi consequência directa do descolamento da placenta com um grande coágulo associado» (cfr. alínea uuu) da matéria de facto).

  16. Provado ficou também que «Os mecanismos responsáveis pela bradicárdia fetal são diversos, estando entre eles o descolamento da placenta», assim como que «O risco da perda da gravidez na sequência de descolamento da placenta é grande e isso pode acontecer em questão de minutos, sendo que foi o que muito provavelmente sucedeu no caso da Autora» (cfr. alíneas vvv) e zzz), respectivamente, da matéria de facto).

  17. Não poderia o Tribunal a quo ter julgado existirem especiais deveres de cuidado, com emprego dos meios aptos a evitar a consumação do descolamento da placenta, designadamente mediante a monitorização contínua da Autora com cardiotocógrafo, se «Face a uma taquissitolia uterina, não era forçoso ou sequer provável tratar-se de uma situação de descolamento da placenta» (cfr. alínea h) da matéria de facto), sendo certo que tal «pode acontecer em questão de minutos» (cfr. alínea zzz) da matéria de facto).

  18. Em face do exposto, dúvidas não restam de que a conduta dos médicos e do Hospital não padece de qualquer ilicitude nem culpa, tendo o Tribunal decidido em contradição com os factos dados como provados e violado o disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

  19. Não poderia o Tribunal a quo concluir por uma conduta censurável, alegadamente caracterizada por uma execução tardia do parto, se no momento da verificação da taquissistolia, às 5h20, ficou provado que «nenhuma outra diligência adicional ou específica era exigida» (cfr. alínea i) da matéria de facto), sendo que os restantes factos dados por provados demonstram terem os médicos cumprido com os seus deveres e aplicado os meios que eram devidos.

  20. O entendimento do Tribunal a quo sobre a verificação do nexo de causalidade é deficiente na especificação dos fundamentos de facto que apresenta para o justificar, o que acarreta, incontornavelmente, a nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1, do artigo 668.º do CPC.

  21. O Tribunal a quo entendeu que a morte do feto foi causada pela «actuação dos médicos entre a data de entrada da A. nas urgências e a decisão de efectuar a cesariana e, bem assim, a falta de dispositivos de monitorização disponíveis no Hospital R.» (cfr. p. 32 da sentença).

  22. Essa conclusão encontra-se pois evidentemente em contradição com a matéria de facto que resultou provada, violando o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, que não permite estabelecer uma relação naturalista e de adequação entre a referida actuação dos médicos – não obstante, lícita – e a ocorrência da morte do feto, que se deveu a um descolamento da placenta cujo diagnóstico apenas teve lugar na realização da cesariana.

  23. Ademais, o Tribunal a quo, começa por concluir por uma falta no funcionamento do serviço, associada à indisponibilidade do equipamento mencionado, para determinar a ilicitude.

  24. Partindo desse facto, o Tribunal a quo deveria ter verificado os demais pressupostos relativamente a essa alegada “faut de service”, ou falta no funcionamento do serviço. A respeito da culpa, limitou-se o Tribunal a quo a fazer uma apreciação na pessoa dos médicos relativamente à alegada actuação tardia e à omissão do emprego do referido equipamento. Não apreciou, como lhe era imposto por força do artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967 – os quais violou -, a existência de culpa na indisponibilidade do...

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