Acórdão nº 01608/06 de Tribunal Central Administrativo Sul, 07 de Dezembro de 2006

Magistrado ResponsávelRogério Martins
Data da Resolução07 de Dezembro de 2006
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam em conferência os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul: O Ministério Público interpôs o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 27.6.2006, pela qual foi julgado procedente o pedido de intimação para a emissão de alvará de licença de utilização eferente a uma construção destinada a habitação.

Formulou nas suas alegações as seguintes conclusões de recurso: I - A decisão de 27.12.2005 do Tribunal Judicial de Albufeira nada decidiu sobre a necessidade ou não de licença de ocupação do domínio hídrico, não tendo ratificado o embargo extrajudicial ali em causa por razões formais, pelo que não pode incluir-se na matéria assente o constante do respectivo ponto 4.

II - Qualquer construção que se encontre implantada no domínio hídrico, nos termos definidos no art.0 2o do Decreto-Lei n.º 46/94, carece sempre de autorização de utilização a solicitar ao Instituto da Água, nos termos do art.° 3o do referido diploma, quer esteja inserida no domínio hídrico público quer no domínio hídrico privado.

III - Não tendo sido obtida tal autorização, quer aquando do licenciamento da construção quer previamente ao pedido de licença de utilização, tem este pedido de ser indeferido, nos termos do disposto no art.º 31°, n.º 1, e 24°, n.º 1, al. a) e b) do Decreto-Lei n.º 555/99, tal como já se encontrava previsto no art.º 63°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91.

IV - Por isso mesmo, a Câmara requerida proferiu despacho em 23.6.2003 no qual foi manifestada a intenção de indeferir o pedido de licença de utilização pelo que assim não se formou deferimento tácito sobre tal pedido - art.° 26°, n.°1,do Decreto-Lei n.º 445/91.

V - Em consequência, a decisão de ordenar a emissão do alvará de utilização iria consubstanciar na prática de um acto ferido de nulidade, por violar o disposto no art.0 63° do Decreto-Lei n.°445/91 e art.º 24°, n.º 1, e 31° do Decreto-Lei n.º 555/99, o que não poderá resultar do disposto no art.º 111° a 113° do Decreto-Lei n.º 555/99.

VI - Atenta a falta de resposta prevista no art.0 112°, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 555/99, a consequência de tal falta deverá ser a prevista no art.º 84°, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e não a aplicação do disposto nos art.ºs 483º e 484° do Código de Processo Civil, uma vez que a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil só é admissível se inexistirem normas aplicáveis à situação no domínio do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e o art.º 83°, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos constitui norma pertinente das acções administrativas especiais, aplicável conforme previsto no art.° 35°, n.o2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, dado que a intimação dos art.0 111° a 113° do Decreto-Lei n.º 555/99 tem natureza idêntica à acção de condenação para a prática de acto devido, em cujo título III se integra o referido art.0 83°, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O Recorrido pugnou pela improcedência do recurso jurisdicional por entender, tal como ficou decidido, que nada obsta à requerida intimação.

*Cumpre decidir.

*I - Matéria de facto: O Tribunal a quo deu como assente determinada matéria de facto no pressuposto de que a falta de contestação verificada teria a consequência de se darem como confessados os factos articulados pelo requerente, nos termos do disposto no artigo 484º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

A falta de oposição não tem, no entanto, tal consequência em processo nos tribunais administrativos, tal como defende o Recorrente.

Ao processo nos tribunais administrativos aplicam-se as normas constantes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - art.º 1º deste diploma.

Só quando, de todo, uma determinada questão do processo contencioso administrativo não encontra solução no Código de Processo nos Tribunais Administrativos se deve ir buscá-la ao Código de Processo Civil - idem.

Este é o entendimento que melhor se coaduna com o equilíbrio e a coerência de cada sistema, neste caso o sistema do processo nos tribunais administrativos.

E se é certo que este processo se aproximou, na reforma que entrou em vigor em Janeiro de 2004, da matriz do processo civil, não é menos certo que manteve muitas especificidades ao longo dos cerca de cento e noventa artigos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Especificidades estas a que não é alheio o facto de, por regra, estarem em discussão matérias em que o interesse público está presente e é predominante, dada a competência dos tribunais administrativos - art.º 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e art.º 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

No caso concreto existe norma aplicável, a invocada pelo Ministério Público, constante do art.º 83º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: "Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 84º, a falta de contestação ou a falta nela de impugnação especificada não importa confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios." Isto porque está aqui em causa a invocada omissão ilegal de um acto administrativo e pretende-se a condenação à prática do acto pretensamente devido, a emissão de uma licença de utilização e respectivo alvará - art.º 46º, n.ºs 1, e 2º, al. b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

De todo o modo, a aplicação ao caso concreto do disposto no Código de Processo Civil conduziria sempre ao mesmo resultado, da inoperância automática da revelia.

Na verdade teria aqui aplicação do disposto na alínea c) do artigo 485º que excepciona os efeitos da revelia quando "a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter".

É que neste caso - ao contrário do que defende o ora Recorrido - a Autoridade demandada, o Presidente da Câmara Municipal de Albufeira, não pode, de livre vontade, conceder ou não licenças de utilização de casas, o que aqui se requer.

Os órgãos autárquicos concedem licenças de construção ou de utilização de acordo com a lei e uma vez verificados os requisitos ou pressupostos por esta exigidos (ver, por exemplo, art.ºs 8º, 18º e 24º do Decreto-Lei n.º 555/99). A margem de discricionariedade, normalmente técnica, move-se sempre nos limites estreitos estabelecidos pela lei.

O que se compreende, uma vez que estão em causa interesses públicos de grande relevo, como o ambiente, a qualidade de vida e até a integridade física e a vida dos cidadãos. O "acto devido" é, portanto, em obediência ao princípio da legalidade, a concessão ou recusa da licença de acordo com o que a lei estipula.

Pensando no caso concreto, construir uma moradia em espaço protegido de arribas ou numa falésia com o risco de derrocada não é, no nosso sistema jurídico, uma questão que diga apenas respeito a quem quer construir e que a edilidade possa autorizar mesmo que tenha essa vontade.

O desincentivo à concessão ilegal de licenças vai, aliás, ao ponto de se responsabilizarem civil, disciplinar e criminalmente os funcionários que desrespeitem a lei - art.º 52º e 56º do Decreto-Lei n.º 445/91, e art.ºs 98º a 100º do Decreto-Lei n.º 555/99.

Ou seja: ainda que a edilidade e o interessado particular estivessem de acordo, o Tribunal não poderia limitar-se a pôr a chancela de uma sentença sobre um acto ilegal, a concessão de uma licença ao arrepio de normas imperativas.

A definição do "acto devido", para a prática do qual se requer a presente intimação, passa, portanto, ao largo da vontade das partes pelo que esta é ineficaz para produzir o efeito jurídico pretendido.

Forçoso é concluir que o Tribunal não só pode mas deve fixar os factos relevantes, incluindo os instrumentais que resultem dos autos e do processo instrutor e que permitam sustentar a decisão de o acto pretendido ser ou não o "acto devido", sob pena de insuficiência ou mesmo nulidade da decisão - n.º 3 do art.º 264º e al. d), do n.º 1, do art.º 668º, ambos do Código de Processo Civil.

Isto porque, desde logo, tanto a Administração como os Tribunais estão sujeitos ao princípio da legalidade, sendo-lhes vedada a prática de actos ilegais - art.º 3º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo, art.ºs 3º e 4º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e art.ºs 203º e 266º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Este princípio para a Administração, ao contrário do que sucede para os particulares, significa não simples compatibilidade com a lei - fazer tudo o que a lei não proíba - mas vai mais longe, exige, conformidade com a lei - fazer só o que a lei prevê.

É o que resulta das expressões, utilizadas no mencionado art.º 3.º do Código de Procedimento Administrativo: "obediência à lei", "nos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos" e "conformidade com os fins para que os mesmos poderess lhes foram conferidos" (ver a este propósito Mário Esteves de Oliveira e outros, no Código de Procedimento Administrativo, comentado, 2.ª ed., pp. 86-90).

Acresce que está em causa a possibilidade de a concessão da licença de utilização se traduzir na prática de um acto nulo - art.º 52º, n.1, al. b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20.11, art.º 68º, al. a), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12.

Ora a nulidade dos actos administrativos é invocável a todo o tempo e é de conhecimento oficioso - art.º 134º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo.

Não existe, por isso, um momento processual, designadamente a resposta, oposição ou contestação, a partir do qual a nulidade do acto que se pretende ver praticado já não possa ser invocada ou oficiosamente conhecida.

A questão da nulidade do acto de atribuição de uma licença de utilização é, portanto, uma questão que o Tribunal não está impedido, antes deve conhecer - al. d), do n.º 1, do art.º 668º do Código de Processo Civil.

Consequentemente, o Tribunal não só pode como deve fixar os factos (a par dos...

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